RESENHA | O Sol Na Cabeça – Geovani Martins

em 24 de junho de 2018

Livro: O Sol Na Cabeça
Autor: Geovani Martins
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 120
Com a estreia de Geovani Martins, a literatura brasileira encontra a voz de seu novo realismo. Nos treze contos de O sol na cabeça, deparamos com a infância e a adolescência de moradores de favelas – o prazer dos banhos de mar, das brincadeiras de rua, das paqueras e dos baseados –, moduladas pela violência e pela discriminação racial.
Em O sol na cabeça, Geovani Martins narra a infância e a adolescência de garotos para quem às angústias e dificuldades inerentes à idade somase a violência de crescer no lado menos favorecido da “Cidade partida”, o Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XXI.
Em “Rolézim”, uma turma de adolescentes vai à praia no verão de 2015, quando a PM fluminense, em nome do combate aos arrastões, fazia marcação cerrada aos meninos de favela que pretendessem chegar às areias da Zona Sul. Em “A história do Periquito e do Macaco”, assistimos às mudanças ocorridas na Rocinha após a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora, a UPP. Situado em 2013, quando a maioria da classe média carioca ainda via a iniciativa do secretário de segurança José Beltrame como a panaceia contra todos os males, o conto mostra que, para a população sob o controle da polícia, o segundo “P” da sigla não era exatamente uma realidade. Em “Estação Padre Miguel”, cinco amigos se veem sob a mira dos fuzis dos traficantes locais.
Nesses e nos outros contos, chama a atenção a capacidade narrativa do escritor, pintando com cores vivas personagens e ambientes sem nunca perder o suspense e o foco na ação. Na literatura brasileira contemporânea, que tantas vezes negligencia a trama em favor de supostas experimentações formais, O sol na cabeça surge como uma mais que bem-vinda novidade. 
Temos notícias todos os dias sobre algo acontecendo na periferia: tráfico de drogas, prostituição, mortes e mais mortes. Talvez seja nisto que você pense quando ouve a palavra "favela". Porém, já parou para pensar que é mais que isso? Já realmente foi em uma favela? Já morou na periferia? Se não, é neste livro que você entenderá melhor esta sociedade. Pois, sim, é uma sociedade própria. Com sua própria cultura e que muitas vezes não paramos para conhecer ou entender. Só julgamos.
Em treze contos, Geovani Martins apresenta para a literatura a sua voz e a força que ela tem. Vivendo na realidade em que descreve, o autor não romantiza nada e deixa tudo bem realista para o leitor sentir de verdade tudo o que está contido nestas 120 páginas. É uma crítica social, porém, vai ainda mais além. Falando sobre a verdade e sobre o choque de cultura existente dentro de uma favela quando chegamos lá pela primeira vez, ele consegue passar para o leitor a sensação de estar lá e fora isto, Geovani Martins vai te mostrar como é crescer dentro de um lugar cercado pela desigualdade, pela violência e pelo preconceito. A favela, como muitos preferem dizer, não é só cercada pelo tráfico de drogas ou pela violência, é cercada por pessoas. PESSOAS. Que assim como qualquer outra, está se desenvolvendo. Viver naquela realidade só trazem para elas uma bagagem diferente, porém, a sociedade prova mais uma vez que o preconceito é maior do que ver uma criança como uma criança e não como a criança da favela que só por ser de lá, você provavelmente acha que vai te assaltar.
Divido em 13 contos que não se interligam entre si, o que todos em comum é que de alguma forma, a vida dos personagens tem alguma ligação com as periferias brasileiras. Após eu receber um pequeno livrinho sobre o autor falando sobre "Como a Favela Me Fez Escritor", descobrimos que o autor do livro não nasceu em uma favela, mas teve que se mudar para uma aos 13 anos de idade e ele faz questão de mostrar o choque provocado por esta mudança e não é por causa do tráfico de drogas ou a violência, como temos sempre o costume de imaginar. Era por tudo. Tudo era diferente: o jeito de falar, as brincadeiras. A realidade. Ao se estar lá pela primeira vez, tem-se um choque de cultura.
"O que pouco se fala é que, diferente das outras favelas, o abismo que marca a fronteira entre o morro e o asfalto na Zona Sul é muito mais profundo. É foda sair do beco, dividido com canos e mais canos o espaço da escada, atravessar as valas abertas, encarar os olhares dos ratos, desviar a cabeça dos fios de energia elétrica, ver seus amigos de infância portando armas de guerra, pra depois de quinze minutos estar de frente pra um condomínio, com plantas ornamentais enfeitando o caminho das grades, e então assistir adolescentes fazendo aula particulares de tênis. É tudo muito próximo e muito distante. E, quanto mais crescemos, maiores se tornam os muros."
Querendo mostrar isto para o leitor, os 13 contos nos apresentam essa realidade, porém, o autor causa impacto no primeiro conto, porque em "Rolézim" ele não poupa detalhes nestas diferenças, a linguagem usada, cheia de gírias deles, a forma de pensar e de viver. É um choque para o leitor que talvez não esteja acostumado com aquilo, principalmente com a linguagem usada neste primeiro conto. Foi em "Rolézim" que precisei ler duas ou mais vezes para conseguir entender realmente o que estava acontecendo e, então vem o pensamento: "Imagina chegar em uma periferia pela primeira vez? Só pela linguagem já percebemos as diferenças." Ele consegue fazer o leitor sentir este impacto já no primeiro momento e é surreal a forma como somos jogados nestes contos.
"Passado o turbilhão, fiquei com nojo de ter ido tão longe, lembrando da minha avó, imaginando que aquela senhora também devia ter netos. Porém, esse estado de culpa durou pouco, logo lembrei que aquela mesma velha, que tremia de pavor antes mesmo que eu desse qualquer motivo, com certeza não imaginava que eu também tivera avó, mãe, família, amigos, essas coisas todas que fazem nossa liberdade valer muito mais do que qualquer bolsa, nacional ou importada."
Todos os contos são fantásticos, mas se tivesse que escolher, meus favoritos seriam: "Espiral" e "Rabisco", porém, não vou descrever nenhum conto nesta resenha porque quero que vocês sintam a sensação e o impacto de estar lendo cada um dos contos pela primeira vez, sem saber nada, pois pode ter certeza, cada um deles mexerá com vocês de uma forma diferente.
No entanto, é possível falar sobre o que eles trazem ao todo, pois mesmo sendo diferentes, trazendo diversas mensagens, todos trazem um conceito: uma crítica social ao que você pensa que a favela é e o que de fato ela é. Talvez vocês ouçam por aí que este livro é uma história sobre diferentes pessoas crescendo em uma periferia, mas é mais que isso. Tudo está nos detalhes.
"Quando ouvia do pai o jeito que devia ser, parecia muito fácil. Dormia com a tranquilidade de que o amanhã seria muito diferente. Mas, quando via, estava repetindo os mesmos erros, sempre procurando sarna para se coçar. Essa onda rápida e forte de arrependimento o atingiu em cheio bem na hora em que sentia felicidade. No entanto, o menino vibrava tanto com o efeito, que logo foi capaz de atravessá-la, agarrado à certeza de que nunca, por nada nessa vida, seria descoberto." 
A história nos mostra a confusão que pode ser para uma criança crescer dentro de uma favela, vendo casos de extrema pobreza, no entanto, ver ao lado, condomínios de luxo e pessoas cuja a a renda financeira é maior que a de muitos da sua realidade. A criança cresce vendo os muros da desigualdade a impedindo de, talvez, uma nova realidade. Fora isso, todos ali crescem vendo os olhares de medo da classe média, como se crescer na periferia já fizesse de você um ladrão. É o preconceito muitas vezes velado sendo estampado contra uma criança que só quer brincar.
A violência policial é um tema bem tratado aqui. E, não, não pensem que o autor está aqui para defender os "bandidos", ele está mostrando a realidade. A verdade de que nenhum lado é cem por cento bom. Com corrupção e a violência, muitos policiais que deveriam estar ali para proteger, não estão preocupados se estão ferindo – matando – pessoas inocentes, moradores que não merecem viver uma vida de medo só porque moram ali.
"Para quem veste a capa da justiça nesse tipo de situação, o pichador e o ladrão têm quase sempre o mesmo valor e o mesmo destino."
Um ponto importante da história é sobre como vemos falar muito sobre drogas, principalmente sobre a maconha. Talvez possa parecer ruim ver a naturalidade com o que autor fale disso e, talvez, para alguns, ele pareça estar fazendo uma apologia às drogas, mas não é isso. Como já falamos, o autor está trazendo uma realidade e, sejamos realistas, nas periferias se tem drogas, como nos outros lugares, mas ali é mais expostos. Infelizmente, crianças crescem vendo drogas e armas e Goevani Martins nos mostra como isso se torna natural para eles, que, pior ainda, podem passar até a admirar aquilo. Mostrando o uso ou a venda, o autor está nos retratando a real ambientação daquele lugar, onde isto é natural.
 "A sensação que dava era de que a vida nunca deixa espaço pra planejar nada, as coisas vão acontecendo de um jeito ou de outro, sempre atropelando tudo o que é projetado. Só no futuro – quando ele vem – é que dá pra entender, rir ou chorar as histórias vividas."
Mesmo que eu já tenha lido livros de contos antes e até goste do estilo literário, de verdade, este é sem dúvida o melhor livro do contos que já li. A forma como o autor consegue trazer tanto significado para pequenas histórias que juntas se tornam algo grande, é surreal. É fantástico!
Eu estava curiosa para entender o que tinha de tão maravilhoso neste livro que foi vendido para outros oito países. Sabendo o quanto a literatura nacional é desvalorizada, este livro tinha que ter algo muito especial e tem: cada palavra, cada estrofe, cada conto escrito por este autor provoca no leitor uma inquietação, uma vontade de entender mais e de não ser a pessoa que talvez olhe com medo para uma outra pessoa, só pelo seu lugar de origem. João Moreia Salles estava extremamente certo ao dizer que esta é uma nova língua brasileira que chega à literatura com força inédita, pois este autor precisa ser lido pelo mundo, para que todos possam ver a composição maravilhosa de cada página que ele escreve.
"Não demorou muito pra entender tudo o que existia a sua volta, certezas e mais certezas corriam por suas veias, ele vibrava. Estava claro, era sim pra estar ali. Aquilo era sua vida e sua história, e, mesmo se sentindo fraco e egoísta, concordou que não podia mais lutar contra o inevitável."
Esta mera resenha não nada ao tudo que este livro é, mas é a minha forma de dizer obrigado por uma leitura tão impactante. Impactante porque te dá uma visão mais abrangente de uma sociedade que está sempre nos jornais. Impactante porque é uma realidade sendo falada sem medo e sem vergonha. Impactante porque nos faz sentir aquela inquietação e nos perguntar: "será que não sou eu o preconceituoso que deia um lugar definir as pessoas?". Impactante porque ao fechar as páginas deste livro, queremos abri-lo novamente e descobrir o que mais esta história tem a nos ensinar, pois este é um livro que não importa quantas vezes você leia, sempre terá algo novo te esperando.
"Eu nunca entendi esse movimento. Quero dizer, sempre me senti profundamente incomodado com esses silêncios inexplicáveis. É sempre como se alguma coisa estivesse rompendo. De um momento pro outro tudo se desfaz, tudo desaba, e ficamos sozinhos frente ao abismo que é a outra pessoa."

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10 comentários:

  1. Oi, Gabi
    Eu não gosto de contos não, mas eu li esse livro e me senti bastante imersa sobre o tema. Achei legal o primeiro deles trazer uma narrativa da periferia, acho que consegui sentir maior empatia pelos personagens que aparecem no livro, apesar de ter alguns contos que não me agradaram. Trazer a violência, a bandidagem e os sonhos perdidos de uma forma nua e crua dessas pessoas foi muito legal. Eu não conhecia e não sabia o que se passava nas periferias, sempre tive um certo preconceito e o Geovani quebra alguns tabus que a gente tem.
    Beijos
    http://www.suddenlythings.com/

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  2. Que resenha maravilhosa, confesso que não sei o que acontece de fato nessa sociedade e quando você citou ali que só julgamos me chamou bastante atenção, porque é verdade. Fiquei interessada nesse livro e já o adicionei à minha lista e que foi indicado por você. Parabéns pela resenha :)

    http://submersa-em-palavras.blogspot.com/

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  3. Olá, Gabi.
    A primeira vez que vi sobre esse livro foi no programa do Bial. Eu não sou fã de contos, mas me interesso por todo o assunto que é abordado. Eu já li um livro que a história acontece em uma comunidade e choquei em várias partes. Mas ainda acho que para conhecer a realidade só quem mora lá mesmo.

    Prefácio

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  4. Oi, Gabi!
    Eu gosto de contos, apesar de não ler muitos. Eu fiquei bastante interessada nesse livro e principalmente nos contos que você mais gostou. Quero saber o que fez te apegar tanto.
    Beijos
    Balaio de Babados

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  5. Hey Gabi! Tudo bom?
    Não conhecia o livro, e de fato imagino o impacto que os leitores devam ter em sua leitura, já que não é a realidade pra muitos.
    Espero que dê uma passadinha no meu cantinho também!
    Um abraço,
    ~ miiistoquente

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  6. Oi Gabi, tudo bem?

    Eu não costumo ler contos, gosto de livros com uma história só, mas achei muito interessante essa composição de contos que trazem mais sobre a realidade brasileira. Mesmo que possamos acompanhar pela televisão, rádio, jornais, acho de extrema importância a literatura mostrar essa realidade também de forma a eternizar o que acontece com as pessoas do país no momento em que o livro é publicado.
    Adorei a resenha.

    Beijos
    http://espiraldelivros.blogspot.com/

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  7. Oi Gabi.
    Já li "O sol na cabeça" e assim como você gostei do que encontrei, é uma literatura realista, sentida; melhor ainda saber que esse livro está ganhando o mundo.
    Beijos

    Divagando Palavras
    www.divagandopalavras.com

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  8. Parece ser um livro bem interessante.

    Jovem Jornalista
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    Até mais, Emerson Garcia

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  9. Olá...
    É engraçado como um livro pode despertar diferentes opiniões entre seus leitores e isso é muito legal de se acompanhar :)
    Já li O SOL NA CABEÇA e realmente achei um livro bem impactante e acho que retrata de forma real a vida em comunidades, porém, tive tantas ressalvas durante a leitura, principalmente, em relação ao abuso do uso de drogas que sinceramente me decepcionei muito com a leitura... Mas, fico feliz que tenha curtido a leitura <3
    Bjos

    http://coisasdediane.blogspot.com.br/

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  10. Oi, Gabi! Estou chegando à conclusão que você é minha "gêmea literária" hehe

    Que resenha maravilhosa!!! Eu AMEI esse livro e consegui sentir em sua resenha tudo aquilo que eu senti durante a leitura dele. Geovani captou toda uma realidade cruel que muita gente insiste em fechar os olhos e fingir que não existe, né!? E fez isso com a verdade de quem vivenciou tudo aquilo. É arrepiante vê-lo alcançar outros países com sua palavra tão genuína e tão cheia de significados.
    Amei sua resenha tanto quanto o livro!

    Beijos <3

    http://www.aquelaepifania.com.br/

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